Para o gramático Evanildo Bechara, autor da Moderna Gramática Portuguesa, o aluno não vai para a escola “para viver na mesmice” e continuar falando a “língua familiar, a língua do contexto doméstico”. “Sempre se vai para a escola para se ascender a posição melhor. A própria palavra educar, que é formada pelo prefixo latino edu, quer dizer conduzir. O papel da educação é justamente tirar a pessoa do ambiente estreito em que vive para alcançar uma situação melhor na sociedade”.
Evanildo Bechara, gramático e ocupante da cadeira 33 da ABL |
Em entrevista ao iG, Bechara, que ocupa a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras e é autoridade máxima no Brasil quando o assunto é novo acordo ortográfico, afirma que a proposta do livro didático de português que dedica um capítulo ao uso popular da língua Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender, adotado pelo Ministério da Educação (MEC) para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), está perfeita do ponto de vista do técnico. Mas do ponto de vista do professor de português, segundo ele, é como se dissesse: “eu vou ensinar o que é correto, mas se você quiser continuar usando o menos correto, você pode continuar”. Segundo Bechara, neste caso, está se tirando do aluno o que ele considera o elemento fundamental na educação: o interesse para aprender mais. Mas, para o acadêmico, o sucesso da sala de aula não depende do livro adotado. Depende da técnica e do preparo do professor.
O livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender, adotado pelo Ministério da Educação (MEC), dedica um capítulo ao uso popular da língua. Qual é a opinião do senhor?
Evanildo Bechara: Em primeiro lugar, o aluno não vai para a escola para aprender “nós pega o peixe”. Isso ele já diz de casa, já é aquilo que nós chamamos de língua familiar, a língua do contexto doméstico. O grande problema é uma confusão que se faz, e que o livro também faz, entre a tarefa de um cientista, de um linguista e a tarefa de um professor de português. Um linguista estuda com o mesmo interesse e cuidado todas as manifestações linguísticas de todas as variantes de uma língua. A tarefa do linguista é examinar a língua sem se preocupar com o tipo de variedade, se é variedade regional, se variedade familiar, se é variedade culta. Ele estuda a língua como a língua se apresenta. Já o professor de português, não. O professor de português tem outra tarefa. Se o aluno vem para a escola, é porque ele pretende uma ascensão social. Se ele pretende essa ascensão social, ele precisa levar nessa ascensão um novo tipo de variante. Não é uma variante que seja melhor, nem pior. Mas é a variante que lhe vai ser exigida neste momento de ascensão social.
iG: Para o MEC, o papel da escola não é só ensinar a forma culta da língua, mas também o de combate ao preconceito contra os alunos que falam “errado”. Como o senhor avalia essa orientação?
Evanildo Bechara: Ninguém vai para a escola para viver na mesmice. Eu chamaria de mesmice idiomática. O aluno vai para a escola, mas acaba saindo dela com a mesma língua com a qual entrou. Portanto, perdeu seu tempo. Na verdade, sempre se vai para a escola para se ascender numa posição melhor. A própria palavra educar, que é formada pelo prefixo latino edu, quer dizer conduzir. Então, o papel da educação é justamente tirar a pessoa do ambiente estreito em que vive para alcançar uma situação melhor na sociedade. Essa ascensão social não vai exigir só um novo padrão de língua, vai exigir também um novo padrão de comportamento social. Essa mudança não é só na língua. Portanto, não é um problema de preconceito. E, para esses livros, parece que o preconceito é uma atitude de mão única. Mas o preconceito não é só da classe culta para a classe inculta, mas também da classe inculta para a classe culta.
iG: Segundo a autora do livro, Heloísa Ramos, a proposta da obra é que se aceite dentro da sala de aula todo tipo de linguagem, ao invés de reprimir aqueles que usam a linguagem popular...
Evanildo Bechara: Acho que do ponto de vista do técnico em língua, está perfeito. Mas do ponto de vista do professor de português, é como se você dissesse “eu vou ensinar o que é correto, mas se você quiser continuar usando o menos correto, você pode continuar”. Então, qual estímulo você dá a esse aluno para ele ascender socialmente? Você está tirando dele o elemento fundamental que funciona na educação: que é o interesse para aprender mais.
iG: Ao defender o uso do livro didático com linguagem popular, o senhor acredita que seria função do MEC preparar o professor para usar esse material?
Evanildo Bechara: Eu acho que não é função do MEC preparar o professor. A função do MEC é dar as condições necessárias para o bom desempenho do professor. E o bom desempenho do professor começa com um bom salário. A função do Ministério não é uma função pedagógica. A função pedagógica é das instituições universitárias, das faculdades de pedagogia, das faculdades de letras. O que o Ministério faz, com muita justiça, é distribuir livros. Mas ele não tem que tomar conta do preparo do professor. O professor tem que ser preparado pelas instituições adequadas. O ministério faz bem em comprar bons livros e distribuí-los para as escolas. Isso é uma coisa perfeitamente digna de elogio. Mas modelar o professor e, por exemplo, comprar livros que falem muito bem de um governante e muito mal de outro governante, num enfoque político dirigido, isso já não é tarefa do Ministério da Educação.
iG: O senhor vê algum problema na utilização desse livro em sala de aula?
Evanildo Bechara: Eu não vejo problema pelo seguinte: porque o sucesso da sala de aula não depende do livro adotado. Depende da técnica e do preparo do professor. Um bom professor pode trabalhar muito bem com um mau livro, assim como um professor sem preparo não consegue tirar tudo de bom do aluno com um bom livro. Porque ele está mal preparado e não sabe aproveitar o livro. O sucesso da sala de aula não depende do livro adotado. Mesmo porque o bom professor não é aquele que ensina. O bom professor é aquele que desperta no aluno o gosto pelo aprender. A sala de aula, o período de escola do aluno, é um período muito pequeno para o universo de informações que ele deve ter para ter sucesso na vida. Pelo menos teoricamente. No meu tempo de aluno, nós tínhamos apenas dois livros: durante quatro, cinco anos, tínhamos a mesma antologia e a mesma gramática. Mas, embora os professores não tivessem tirado o proveito das universidades, eles levavam para a escola uma cultura geral muito boa. E era essa cultura geral do professor de matemática, de física, de química, de português, era o grande atrativo para o aluno. Mas o professor que se limita ao programa estabelecido pelo livro didático, é um professor que é conduzido, é um professor que não tem conhecimento suficiente para sair dos trilhos oferecidos pelo livro didático.
Fonte: Portal IG
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